Mascotes e Herdeiros - Como a Neoplutocracia usa Harvard Para Se Perpetuar
Como Harvard se tornou a máquina de perpetuação da elite global
Sarah Borges
Em junho de 2025, uma manchete atravessou o Brasil: “Brasileira se torna a primeira a se formar com nota máxima em Harvard”. Sarah Borges, mineira de 22 anos, havia conquistado o Prêmio Sophia Freund — honraria concedida ao aluno com maior GPA entre os formandos summa cum laude. A notícia viralizou. Comentaristas celebraram. O Brasil se orgulhou.
A história de Sarah é genuinamente notável. Ela foi a primeira brasileira a receber essa distinção desde que o prêmio foi criado, em 1964. Competiu contra 53 outros formandos com honras máximas numa turma de quase dois mil alunos. Merece cada grama de reconhecimento.
Mas Sarah é o que os americanos chamam de token — termo que traduzo aqui como “mascote”. É a pessoa de fora do grupo dominante que é admitida, celebrada e exibida como prova de que o sistema funciona. O mascote não ameaça a estrutura; pelo contrário, a legitima. Sua presença permite que a instituição diga: “Veja, qualquer um pode chegar aqui.” O fato de que quase ninguém como ela chega é convenientemente omitido.
Mas a cobertura da mídia revelou algo mais interessante que o próprio feito: a forma como nós, brasileiros, projetamos em Harvard um ideal de meritocracia pura. A manchete não dizia apenas “brasileira vence”. Dizia, nas entrelinhas: se você for bom o suficiente, as portas se abrem. Harvard como prova de que talento e esforço vencem qualquer barreira.
É uma narrativa bonita. Também é uma narrativa que Harvard cultiva com esmero — e que os dados não sustentam.
Pense comigo: o que significa “nota máxima” em Harvard?
A Fábrica de A’s
Em outubro de 2025, Harvard divulgou um relatório interno sobre suas próprias notas. Os números eram constrangedores: 60% de todas as notas concedidas são A’s. A nota mediana — aquela que divide a turma ao meio — é A. Não B+. Não A-. A nota mais alta possível.
Não foi sempre assim. Há duas décadas, cerca de 25% das notas eram A’s. Em 2015, o número já havia subido para 40%. Em 2025, atingiu 60%. Uma inflação de notas tão acelerada que a própria universidade admitiu, no relatório, que o sistema estava “falhando em cumprir suas funções-chave de avaliação” e “danificando a cultura acadêmica”.
O fenômeno não é exclusivo de Harvard. Em Yale, 80% das notas em 2022-23 foram A’s. Mas Harvard é Harvard — a referência global de excelência acadêmica. Quando a referência define “excelente” como “normal”, a palavra perde o sentido.
O relatório listou causas: professores temendo avaliações ruins dos alunos; sensibilidade crescente à “síndrome do impostor”; um pico durante a pandemia que nunca foi corrigido. As soluções propostas beiravam a paródia: criar uma nota A+ para distinguir os verdadeiramente excelentes, e incluir a nota mediana nos históricos para que empregadores soubessem que um A em Harvard vale o mesmo que um B em qualquer lugar normal.
Aqui está o paradoxo. Sarah Borges genuinamente se destacou — o Prêmio Sophia Freund não é dado a qualquer um. Mas quando a mídia brasileira celebra “nota máxima em Harvard”, assume que essa nota significa o mesmo que em outras universidades. Não significa. Em Harvard, a maioria dos alunos tem nota máxima. A excepcionalidade de Sarah não está nas notas — está em ter se destacado num ambiente onde quase todos tiram A.
Se as notas não distinguem os alunos, o que distingue?
A Porta de Entrada
A resposta começa antes mesmo de pisar no campus. Harvard tem uma taxa de admissão de cerca de 3-4% — uma das mais baixas do mundo. A narrativa oficial é de competição feroz: dezenas de milhares de candidatos disputando algumas centenas de vagas. Quase impossível entrar.
Mas “quase impossível” depende de quem você é.
Documentos revelados no processo Students for Fair Admissions v. Harvard — que chegou à Suprema Corte em 2023 — mostraram que Harvard opera, na prática, com múltiplas portas de entrada. Uma para candidatos comuns. Outras para categorias especiais.
Os dados são de um estudo do % | | Legados (filhos de ex-alunos) | 33% | | Candidatos normais | ~6% |
Leia os números de novo. Um atleta recrutado tem 86% de chance de entrar. Um candidato na lista de interesse do reitor — categoria reservada para filhos de grandes doadores ou potenciais doadores — tem 42%. O filho de um ex-aluno tem 33%. O candidato sem conexões tem 6%.
Harvard usa uma sigla interna para essas categorias privilegiadas: ALDC — Athletes, Legacies, Dean’s/Director’s List, Children of faculty. Os ALDCs representam apenas 5% dos candidatos. Mas ocupam 30% das vagas.
O desequilíbrio é ainda mais gritante quando se olha por raça. Entre os brancos admitidos em Harvard, 43% são ALDCs. Entre as minorias, menos de 16%. O estudo do NBER calculou que 75% dos ALDCs brancos teriam sido rejeitados se fossem avaliados pelos mesmos critérios aplicados aos candidatos comuns.
É aqui que a narrativa de meritocracia começa a rachar. Quando quase metade dos brancos admitidos entrou por portas laterais — herança familiar, doações, esportes de elite — a competição de 3% não é bem uma competição. É um funil para quem não nasceu na casta certa.
Mas de onde veio esse sistema?
A História que Harvard Prefere Esquecer
Para entender as admissões de Harvard, é preciso voltar um século. Nos anos 1920, a universidade enfrentou o que seus administradores chamavam de “problema”.
O problema tinha nome: judeus.
Em 1921-22, estudantes judeus representavam 21,5% dos alunos de Harvard. A população judaica dos Estados Unidos era de cerca de 3,5%. Pelo mérito acadêmico puro, os judeus estavam sobre-representados por um fator de seis. Para a administração WASP (White Anglo-Saxon Protestant) de Harvard, isso era inaceitável.
O presidente da universidade, Abbott Lawrence Lowell, propôs uma solução direta: uma cota de 15% para judeus. A proposta vazou para a imprensa e causou escândalo. Lowell recuou — mas não desistiu. Se não podia impor cotas explícitas, criaria mecanismos para alcançar o mesmo resultado por outros meios.
Foi assim que nasceram as admissões “holísticas” de Harvard.
Primeiro, vieram os critérios subjetivos: avaliações de “personalidade”, “caráter”, “liderança”. Num sistema baseado apenas em notas e testes, judeus se destacavam. Num sistema que incluía julgamentos vagos sobre quem tinha o “caráter Harvard”, administradores podiam exercer discrição — e exerciam.
Depois, veio a preferência por legados. Uma forma garantida de preservar a demografia da “Velha Harvard” era admitir os filhos dos formados da “Velha Harvard”. Como poucos judeus haviam se formado nas gerações anteriores, poucos teriam filhos com status de legado.
Por fim, veio a “diversidade geográfica” — um eufemismo para reduzir candidatos do Nordeste, onde a população judaica se concentrava, em favor de candidatos do interior do país, onde era escassa.
A estratégia funcionou. Historiadores documentaram que “diversidade geográfica, entrevistas, preferência por legados — tudo foi inventado expressamente para manter o número de judeus baixo”.
Lowell não escondeu suas inclinações. O mesmo presidente que arquitetou o sistema de admissões também tentou banir estudantes negros dos dormitórios, foi vice-presidente da Liga de Restrição à Imigração, e conduziu julgamentos secretos para expulsar alunos suspeitos de homossexualidade. O prédio que leva seu nome só foi renomeado em 2024.
Mas o sistema que ele criou permanece intacto. As mesmas ferramentas — critérios subjetivos de “personalidade”, preferência por legados, avaliações “holísticas” — continuam em uso. Só mudou o alvo.
A História que se Repete
Em 2014, uma organização chamada Students for Fair Admissions processou Harvard. A acusação: discriminação sistemática contra candidatos de origem asiática.
Os dados do processo eram devastadores.
Candidatos asiáticos tinham, em média, as melhores notas acadêmicas e as melhores pontuações em testes padronizados. Mas recebiam sistematicamente as piores notas em “traços de personalidade positivos” — uma categoria que incluía “simpatia”, “coragem” e “gentileza”. Enquanto 22,6% dos candidatos brancos recebiam notas de personalidade acima de 3+, apenas 18% dos asiáticos recebiam o mesmo.
O detalhe revelador estava nas entrevistas. Quando ex-alunos de Harvard entrevistavam os candidatos pessoalmente — conhecendo-os de fato — davam aos asiáticos notas de personalidade comparáveis às dos brancos. Mas quando oficiais de admissão avaliavam os mesmos candidatos apenas pelo papel, sem nunca tê-los conhecido, as notas dos asiáticos despencavam.
A estatística mais brutal: controlando por todas as variáveis (notas, testes, atividades extracurriculares, recomendações), um candidato asiático tinha 25% de chance de ser admitido. Um candidato branco com o mesmo perfil tinha 36%.
O paralelo com os anos 1920 não era sutil. A SFFA argumentou explicitamente que o sistema “holístico” de Harvard tinha raízes nas táticas usadas para limitar judeus. A mesma retórica de “personalidade deficiente”. O mesmo método de critérios subjetivos. Um novo grupo como alvo.
Em junho de 2023, a Suprema Corte decidiu contra Harvard. O voto do juiz Clarence Thomas citou as cotas judaicas dos anos 1920 como precedente histórico. O voto do juiz Neil Gorsuch fez o mesmo. A corte declarou inconstitucionais as admissões baseadas em raça — mas deixou intocados os mecanismos de legado e doação que perpetuam a mesma lógica por outros meios.
A decisão eliminou a discriminação explícita contra asiáticos. Não eliminou o sistema que a produziu.
Siga o Dinheiro
Se você quer entender uma instituição, siga o dinheiro. No caso de Harvard, o dinheiro leva a números difíceis de processar.
O endowment de Harvard — seu fundo patrimonial — soma $56,9 bilhões. É o maior fundo acadêmico do mundo. Para colocar em perspectiva: é maior que o PIB da Bolívia, do Paraguai, do Uruguai e de Honduras. É maior que o PIB de mais de cem países.
O fundo é composto por 14.765 fundos individuais, geridos c $400 milhões | School of Engineering renomeada | | Gerald Chan | $350 milhões | School of Public Health renomeada | | Hansjörg Wyss | $350 milhões | Instituto com seu nome | | Leonard Blavatnik | $200 milhões | Instituto na Medical School |
Desde sua fundação em 1636, Harvard renomeou escolas inteiras em homenagem a doadores apenas três vezes. Ken Griffin, fundador do hedge fund Citadel, conseguiu uma delas. John Paulson, o investidor que ficou bilionário apostando contra o mercado imobiliário em 2008, conseguiu outra.
O que esses bilionários compram com suas doações? Três coisas.
Primeiro, imortalidade institucional. Ter uma escola de Harvard com seu nome é um tipo de prestígio que dinheiro normalmente não compra.
Segundo, acesso à Dean’s Interest List. É a lista que identifica candidatos ligados a grandes doadores ou potenciais doadores. Estar nessa lista significa 42% de chance de admissão, contra 6% para candidatos comuns. É a porta lateral mais cara do mundo — mas, para quem pode pagar, a mais garantida.
Terceiro, benefícios fiscais massivos. Paulson doou $400 milhões e recebeu uma dedução fiscal estimada em $200 milhões. Na prática, metade da “doação” foi paga pelo contribuinte americano. E diferentemente de impostos, que financiam serviços públicos, a doação de Paulson financiou uma instituição que já tinha $50 bilhões no banco.
A ironia não escapou aos críticos. “Doar para Harvard não é um ato de altruísmo”, escreveu a Vox. “É um gigantesco e imoral desperdício de dinheiro.” Malcolm Gladwell foi mais ácido: “Se bilionários não ajudarem, Harvard vai ficar com seus últimos $30 bilhões.”
Em 2024, os mega-doadores mostraram que seu dinheiro comprava mais que nomes em prédios. Quando a reitora Claudine Gay hesitou em condenar protestos pró-Palestina no campus, Griffin, Paulson e Bill Ackman — outro bilionário com laços profundos com Harvard — lideraram uma campanha pública pela sua demissão. Gay renunciou semanas depois, tornando-se a reitora com mandato mais curto da história de Harvard.
O dinheiro compra acesso. Compra nomes. Compra, quando necessário, cabeças.
O Retrato de Classe
Até aqui, falamos de mecanismos — legados, doações, atletas, notas inflacionadas. Mas qual é o resultado líquido? Quem, de fato, estuda em Harvard?
O projeto Opportunity Insights, liderado pelo economista Raj Chetty, cruzou dados de admissões de Harvard com registros fiscais. Os números são inequívocos.
67% dos alunos de Harvard vêm das famílias no topo 20% da distribuição de renda americana.
3% vêm das famílias nos 20% mais pobres.
15% vêm do 1% mais rico — famílias com renda acima de $630 mil por ano.
O dado mais perturbador: o 0.1% mais rico — famílias com renda acima de $2,7 milhões por ano — tem quase a mesma representação em Harvard que os 20% mais pobres da população.
A renda familiar mediana dos alunos de Harvard é $168.800 — mais de três vezes a mediana nacional americana. Cerca de 30% dos alunos são legados — filhos de ex-alunos.
O estudo de Chetty revelou algo ainda mais insidioso. Controlando por notas em testes padronizados — ou seja, comparando candidatos com o mesmo desempenho acadêmico — filhos do 1% mais rico têm 34% mais chance de serem admitidos que filhos da classe média. Filhos do 0.1% têm o dobro de chance.
O padrão forma uma curva em U. Candidatos muito pobres têm alguma vantagem (Harvard precisa de diversidade para as fotos do catálogo). Candidatos muito ricos têm vantagem massiva (legados, doações, Dean’s List). Quem paga o preço é a classe média — famílias com renda entre $80 mil e $150 mil que não são pobres o suficiente para bolsas nem ricas o suficiente para comprar acesso.
Susan Dynarski, professora da própria Harvard Graduate School of Education, resumiu: “O que concluo deste estudo é que a Ivy League não tem alunos de baixa renda porque não quer alunos de baixa renda.”
O Diploma Opcional
Aqui está um fato que deveria ser estranho, mas não é: os dois ex-alunos mais celebrados de Harvard nunca se formaram.
Bill Gates largou Harvard no segundo ano para fundar a Microsoft. Mark Zuckerberg largou no segundo ano para fundar o Facebook. Juntos, acumulam mais de $350 bilhões em patrimônio. São listados como alumni de Harvard. São celebrados como seus maiores sucessos.
Pense no que isso revela.
Se Harvard fosse uma instituição de ensino no sentido tradicional — um lugar onde você vai para aprender coisas que não aprenderia de outra forma — abandonar no segundo ano seria um fracasso. Você teria saído antes de aprender o que veio aprender. Mas Gates e Zuckerberg não são tratados como fracassos. São tratados como gênios que não precisavam do diploma para provar seu valor.
Isso só faz sentido se o diploma não for o produto principal.
O que Gates e Zuckerberg levaram de Harvard não foi conhecimento técnico — isso eles poderiam ter aprendido em qualquer lugar. O que levaram foi acesso. Acesso a uma rede de pessoas que também tinham o selo Harvard. Acesso a investidores que confiavam nesse selo. Acesso à credibilidade instantânea que vem de poder dizer “eu estava em Harvard”.
Zuckerberg conheceu seus cofundadores em Harvard. Acessou seus primeiros investidores através de conexões de Harvard. Ganhou cobertura de imprensa porque “estudante de Harvard cria rede social” era uma história melhor que “cara aleatório cria rede social”.
“A principal coisa que você recebe”, explicou um estudo sobre redes de elite, “é ter Harvard associado a você pelo resto da vida. Você se conecta a outras pessoas de Harvard que também têm status de elite, e isso continua através de redes de alumni para sempre.”
O diploma é opcional. A rede é obrigatória.
A Fábrica de Poder
Se Harvard vende acesso, o que esse acesso produz? Aqui os números se tornam quase absurdos.
104 bilionários têm diplomas de Harvard — mais que qualquer outra universidade do mundo. Se contarmos dropouts como Gates e Zuckerberg, o número sobe para 144. O patrimônio médio dos ex-alunos bilionários é de $9,65 bilhões.
Mas bilionários são o topo da pirâmide. A base é igualmente impressionante. Harvard tem cerca de 18.000 ex-alunos “ultra-ricos” — definidos como pessoas com patrimônio acima de $30 milhões. Isso equivale a 4% de toda a população ultra-rica do planeta.
No mundo corporativo, o padrão se repete. 29% dos executivos seniores das 500 maiores empres distribuição de bilionários por universidade de origem. Sua conclusão: “Harvard não está apenas se destacando — é completamente anormal. É totalmente incomparável a qualquer outra universidade.”
Para comparação:
UniversidadeBilionários (com diploma)Harvard104Stanford69Penn38Columbia32MIT28Yale24
O padrão de Harvard se replica em outras esferas de poder. Os mesmos pesquisadores notaram: “Os padrões que encontramos para bilionários indo a certos lugares são similares para líderes corporativos, são similares para chefes de organizações internacionais, são similares para think tanks, fundações, ONGs.”
Oito presidentes dos Estados Unidos passaram por Harvard. Incontáveis secretários de Estado, juízes da Suprema Corte, presidentes de bancos centrais, diretores de organizações internacionais. A lista de ex-alunos de Harvard é um mapa do poder global.
O Ciclo Fechado
Agora podemos ver o sistema completo.
Doe $100 milhões. Seu filho entra na Dean’s Interest List — 42% de chance de admissão, contra 6% para candidatos comuns. Uma vez dentro, ele recebe A’s quase automaticamente — 60% das notas são A’s. Nas festas e clubes do campus, conhece outros filhos de bilionários. Ao sair — com ou sem diploma, tanto faz — tem o selo Harvard para sempre. Usa esse selo para construir carreira, acumular poder, multiplicar fortuna. Décadas depois, doa para Harvard. Recebe dedução fiscal de 50%. Talvez uma escola com seu nome. E seus netos entram como legados.
O ciclo se fecha sobre si mesmo:
Cada elemento reforça os outros. As doações compram admissões preferenciais. As admissões preferenciais enchem Harvard de filhos de ricos. Os filhos de ricos se conectam entre si. Essa rede gera mais poder e mais riqueza. Parte dessa riqueza volta como doação. E o ciclo recomeça na geração seguinte.
Não é um sistema de mérito disfarçado. É um sistema de casta com verniz de mérito. A diferença entre os dois é a diferença entre “quase qualquer um pode entrar se for bom o suficiente” e “alguns podem entrar se forem bons o suficiente, mas outros entram de qualquer jeito”.
A Nova Aristocracia
O que é uma aristocracia?
No sentido clássico, é um sistema onde posição social é herdada, não conquistada. Você nasce nobre ou nasce plebeu. Seu esforço individual pode melhorar sua vida nas margens, mas não muda sua casta fundamental. Os nobres se casam com nobres, frequentam os mesmos círculos, falam a mesma língua, e passam suas vantagens para os filhos.
O que Harvard faz?
Filhos de ricos têm o dobro de chance de entrar com as mesmas notas. Uma vez dentro, recebem A’s quase automáticos. Nas fraternidades e clubes, constroem redes com outros herdeiros. Ao sair, carregam uma credencial vitalícia que abre portas em qualquer lugar do mundo. E transmitem essa vantagem para seus filhos — que entrarão como legados, com 33% de chance contra 6% dos plebeus.
A única diferença entre Harvard e a aristocracia tradicional é o símbolo. Antigamente, aristocratas exibiam brasões de família. Hoje, exibem diplomas.
O verniz é de meritocracia. O sistema se apresenta como “holístico” — avaliando “a pessoa inteira”, não apenas notas. Usa o vocabulário de inclusão e diversidade. Fala de “primeira geração” e “equidade”. Mantém algumas bolsas para estudantes pobres fotogênicos que provam que o sonho ainda é possível.
Mas os números não mentem. 67% dos alunos do quintil mais rico. 3% do quintil mais pobre. Filhos do 0.1% com o dobro de chance. $57 bilhões em endowment, isentos de impostos. Escolas renomeadas em homenagem a quem escreve cheques de nove dígitos. Um sistema de legados criado explicitamente para excluir judeus nos anos 1920, ainda em vigor para beneficiar quem nasceu na casta certa.
A instituição que mais fala de “privilégio” é a mais privilegiada do planeta.
O Sonho Revisitado
Voltemos a Sarah Borges.
Ela genuinamente se destacou. O Prêmio Sophia Freund não é dado a qualquer um — 53 formandos com honras máximas competem por ele, e ela venceu. É a primeira brasileira em 60 anos de prêmio. Seu feito é real.
O problema não é Sarah. O problema é o que a celebração de Sarah revela sobre nós.
Quando a mídia brasileira noticia “primeira brasileira com nota máxima em Harvard”, não está apenas reportando um fato. Está reforçando uma narrativa: a de que Harvard representa o ápice da meritocracia global, e que chegar lá prova seu valor como indivíduo. É uma narrativa que Harvard cultiva cuidadosamente — e que os dados desmontam.
A cada vez que celebramos um brasileiro “vencendo” em Harvard, celebramos implicitamente o sistema que Harvard representa. Um sistema onde 60% das notas são A’s, mas fingimos que A’s são excepcionais. Onde 43% dos brancos entram por portas laterais, mas fingimos que a competição é justa. Onde filhos do 0.1% têm o dobro de chance, mas fingimos que mérito é o que importa. Onde bilionários compram escolas com seus nomes e deduzem metade do imposto, mas fingimos que é filantropia.
Não estou sugerindo que devemos ignorar brasileiros que se destacam no exterior. Nem que Sarah Borges é cúmplice de um sistema que a antecede em séculos. Estou sugerindo que a forma como cobrimos essas histórias importa. Que há uma diferença entre celebrar uma pessoa e celebrar uma instituição. Que jornalismo não deveria ser relações públicas.
Sarah Borges venceu em Harvard. A pergunta que a mídia não fez — mas que talvez devêssemos fazer — é: o que significa vencer num jogo onde as cartas são marcadas?
E quando celebramos um brasileiro “entrando” para a elite de Harvard, o que exatamente estamos celebrando? A legitimação de uma neoplutocracia?
Referências
Harvard Crimson, “Harvard Releases New Report on Grade Inflation“, outubro de 2025
NBER Working Paper: “Legacy and Athlete Preferences at Harvard“ (Arcidiacono et al.)
Students for Fair Admissions v. President and Fellows of Harvard College, 600 U.S. ___ (2023)
Opportunity Insights, “Diversifying Society’s Leaders?“ (Chetty et al., 2023)
Harvard University Financial Report, 2024-2025
Altrata, “Ultra-High Net Worth Individuals by University”, 2025
Class Central, “Universities with Most Billionaire Alumni“, 2025
Global Networks (journal): Young & Salas Díaz, análise de redes de elite
Harvard Law Review, “The Harvard Plan That Failed Asian Americans“
Harvard Crimson, pesquisas sobre composição ideológica do corpo docente, 2022-2025
Publicado em dezembro de 2025











